A imagem da Mãe de Deus no ícone de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

Por: Raquel Tonini
A imagem da Mãe de Deus no ícone de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é de origem desconhecida, mas segundo uma tradição, teria surgido na Ilha de Creta entre os séculos 13 e 17 e apresenta uma das chamadas “Virgens da Paixão” que, com o Menino nos braços, destaca o significado da Paixão de Jesus e da intercessão da Mãe de Deus em favor da humanidade. Assim, em nossa igreja, dedicada em honra à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a imagem da Mãe de Deus também é um ícone, o modo como ela foi originalmente representada sob esse título. Mas, antes de falarmos desse ícone, vejamos como Jean-Yves Leloup, em seu livro “O Ícone – uma escola do olhar”, define essa pintura sagrada: O ícone é uma escritura simbólica não apenas pela riqueza dos sinais – que o contemplador procura pacientemente decodificar e decifrar –, mas também porque indica e chama a encarnação: o próprio símbolo daquilo que une ou reúne os elementos que, em uma primeira leitura, parecem estar distintos e separados:o visível e o invisível; o tempo e o Eterno; o criado e o incriado; a forma e o sem-forma; o homem e Deus, etc. [2]

Obra realizada por um iconógrafo, ou seja, pessoa que sabe “escrever” e também sabe “ler” o ícone, é uma escrita em cores e formas, destinada à celebração da Liturgia e à oração. Do grego iekón, “não descreve uma história, mas relata tal história interpretando-a, simbolizando-a, transfigurando-a” (LELOUP, 2005, p.16). Também “não é um quadro com um tema religioso: é uma visão do mundo transfigurado (…)” (LELOUP, 2005, p.16).

De modo muito sucinto, tudo isso nos ajuda a entender que não se trata de uma simples pintura, ainda que uma obra de arte, mas que, através de métodos específicos, processos de cores, uso de símbolos e perspectiva invertida, o ícone tem a função de proporcionar ao observador que o contempla e com ele reza, como que ‘uma porta de percepção’, uma abertura à transcendência. Propõe, assim, a visão não de um objeto, de alguma coisa, mas de um “alguém”, ou seja, de um “Outro”, de uma “Pessoa”. Portanto, de um encontro. Fica claro, também, que suas características são fundamentais para garantir que o ícone não se torne um ídolo, ou seja, aquela imagem que, segundo Leloup, “detém o olhar que não pode ir além da imagem dada” [3]. Tudo isso nos coloca diante de uma escola, uma “escola do olhar”, onde o ícone, continuando com Leloup, entre outros, pode “nos ensinar a ler o Invisível no visível, a Presença na aparência e a ver o que o ícone se oferece para ser contemplado, sabendo que, paradoxalmente, isso não é visível; (…)”[4]. É, podemos dizer, uma teologia da presença.

É ainda nesse contexto que podemos ler, também, todo o programa iconográfico presente nessa igreja, no qual o ícone está inserido e que, com uma linguagem própria e adequada ao sagrado e ao espaço de celebração – ou seja, uma linguagem simbólica –, apresenta um conteúdo próprio para a nave, de caráter narrativo, e outro, para a área do presbitério, de caráter teofânico.

Voltando ao nosso ícone, essa pintura sagrada, escrita pelo artista sacro e monge beneditino Dom Ruberval Monteiro OSB é de origem oriental, feita sobre madeira e com técnicas e tradições seculares que obedecem a normas artísticas teológicas muito precisas. Usa têmpera a ovo e folhas de ouro 14 K, segundo padrões da iconografia oriental bizantina. Como imagem artística e religiosa do Invisível e Transcendente, é uma espécie de sacramental e contém mais informações que muitos livros. Por isto, é para ser lido e contemplado.

Esse ícone foi introduzido nessa igreja em procissão solene, quando da celebração do Rito de Consagração do Altar, fixado nesse lugar previamente definido pelo projeto arquitetônico-iconográfico, em vista da organização do espaço celebrativo, com objetivo de criar um ambiente digno onde os fiéis pudessem se aproximar e rezar, contemplando o Mistério ali escrito a partir das cores, inscrições, atitudes e detalhes. Tudo isso tendo em vista cada elemento que traz um significado preciso e nos transmite uma mensagem a partir dos textos sagrados, como veremos a seguir:

– o ícone é composto por quatro personagens, a Mãe com o Menino, ao centro, e os dois arcanjos, um de cada lado. Os caracteres gregos acima da sua cabeça a proclamam Theotokos, Mãe de Deus. Está representada sobre um fundo dourado, símbolo do céu na Idade Média, revelando, assim, sua importância. – no centro da obra temos, então, a imagem da Mãe de Deus, representada em meio corpo, segurando o Menino em seu braço.

A Mãe com o Menino é uma composição iconográfico presente já nos primeiros séculos da Igreja e revela o Mistério da Encarnação. A frontalidade dos personagens, ainda que não absoluta, e a falta de relação afetiva, presentes no ícone, são características da linguagem simbólica. A Mãe, cuja face se inclina levemente em direção ao Filho, tem seu olhar voltado para o observador, colocando-o diante de uma ‘presença’, podemos dizer, da experiência de ser “olhado”. Com a mão esquerda a Mãe sustenta o Filho e com a direita, recebe as mãos do Filho ao mesmo tempo que essa aponta para o Filho, apresentandoO ao observador-contemplador, é aquela que mostra o Caminho.

Na iconografia tradicional cristã as cores compõem a linguagem simbólica, sendo portadoras de mensagem. A Mãe de Deus, aqui, tem a veste em tonalidade azul profundo e manto vermelho púrpura, pigmento tão caro que era reservado apenas às vestes imperiais e, portanto, de grande nobreza e dignidade. E ainda com o texto da Sarça Ardente (cf. Ex 3), cuja iconografia se mostrou sempre na perspectiva do Verbo e do Mistério da Encarnação, unida à Mãe de Deus, temos então que, a Virgem, no momento da Encarnação, é a verdadeira Sarça Ardente, revestida pelo Fogo Divino, que sem destruir, ilumina e transforma a matéria[5]. Vemo-la representada dessa forma em outros ícones como o da Natividade, por exemplo, existindo ainda representações onde o manto é o azul profundo, depende da escola e da região. Aqui, o véu na mesma cor do manto, com uma franja dourada, esconde seus cabelos e a parte superior da fronte, assim como seus ombros. A Virgem nunca é representada com os cabelos visíveis ou soltos e o véu geralmente traz três estrelas. Como aquela que “guardava todas as coisas, meditando-as no coração” (cf. Lc 2, 19), sua boca é pequena e seus olhos são grandes. Seus olhos, cheios compaixão e ternura, voltados para o observador, mostra a prontidão em socorrer e amparar aqueles que a contemplam e o convite: sermos também nós, “perpétuos socorros” para o mundo sedento de Deus. O semblante de Maria, ainda que recorde as imagens do tipo da Ternura, “é o semblante sereno da liberdade humana capaz de dizer ‘sim’ (fiat) Àquele que É, que era, que será…” (LELOUP, 2005, p. 113), e n’Ele encontrar o sentido da vida, a paz e a alegria.

O Filho, por sua vez, tem auréola cruciforme em ouro, simbolizando o divino “Sol nascente que nos visita” (cf. Lc 1,78) vitorioso, e veste uma túnica branca, cor soma de todas as cores, símbolo do intemporal e da Luz. Com semblante adulto e fronte grande, cheia de sabedoria, olha no sentido contrário da Mãe em direção aos Arcanjos. Com feição serena, o seu Corpo inclina-se na direção da Mãe, colocando suas Mãos nas mãos da Mãe, em um movimento de confiança e refúgio diante dos instrumentos apresentados, os sinais que preanunciam sua Paixão. As sandálias desamarradas revelam o total despojamento do Senhor, cuja dupla kenosis se conclui na Cruz.

Por fim, no alto, lateralmente à figura central da Mãe com o Filho, encontramos os Arcanjos. Estão levemente inclinados em direção ao centro e “têm as mãos veladas, em sinal de adoração a Deus feito homem e de reconhecimento pela manifestação, na paixão, do poder redentor divino, isto é, a cruz é o sinal da ressurreição e da vitória final” [6]. À esquerda, São Miguel apresenta a lança, a vara com a esponja e os cravos. À direita, São Gabriel apresenta a cruz, já como cruz vitoriosa. Estes arcanjos também estão representados nos vitrais laterais ao presbitério e na capela da Reserva Eucarística, com inscrições próprias referentes às suas missões.

Muitos outros detalhes podem ser observados e contemplados. É fundamental termos sempre em mãos os textos da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição, que nos possibilitam uma boa Lectio Divina e nos colocam nesse Mistério. O espaço litúrgico e sua composição sejam, nesse contexto, sempre um convite e o resultado de uma pastoral litúrgica, que nos ajude, individual e comunitariamente, a viver, celebrar e aprofundar nossa experiência de fé, nosso encontro com o Belo, Jesus Cristo, na comunhão dos irmãos, pois como nos recorda o papa São Paulo VI:

“A Via da Beleza responde ao íntimo desejo de felicidade que está albergado no coração de todos os homens. Ela abre horizontes infinitos, que levam o ser humano a sair de si próprio, da rotina e do efêmero instante que passa, para se abrir ao Transcendente e ao Mistério, a desejar, como fim último do seu desejo de felicidade e da sua nostalgia de absoluto, esta Beleza original que é o próprio Deus, Criador de toda a beleza criada”.

Raquel Tonini Rosenberg Schneider

Arquiteta, especialista em Espaço Celebrativo Litúrgico e Arte Sacra – jun.2020

[1] Pontifical Romano; Cap. II: Dedicação de uma igreja, 1. 2 Instrução Geral do Missal Romano (IGMR) 257 (294)

[2] LELOUP, Jean-Yves. O Ícone – uma escola do olhar. São Paulo: Editora UNESP, 2005. P. 20 e 21.

[3] Ibid., P. 14.

[4] Ibid., p. 15.

[5] Cf. MONTEIRO, Ruberval. A sarça Ardente e o coração contrito. Disponível em < https://livroquadrado.blogspot.com/search?q=a+sar%C3%A7a+ardente>. Acesso em 10.junho.2020.

[6] PARRAVICINI, Giovanna (organiz). A Vida de Maria em ícones. São Paulo: Edições Loyola, 208. P. 150. Texto da imagem da p. 151, ícone da “Mãe de Deus da Paixão”, século XIX (coleção privada, Itália).

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