Outubro, mês voltado às missões e à vivência do Sínodo para Pan-Amazônia. O papa Francisco convida a todos os católicos a lançarem o olhar para esse importante bioma brasileiro.
Por Ana Carolina Ronchi – Agência Kharis
Há décadas a Arquidiocese de Vitória tem como Igreja-Irmã a Prelazia de Lábrea. Todos os anos comunidades e paróquias da região se organizam para enviar doações às missões na região da Amazônia. É necessário compreender a importância dessa relação para o sustento da Igreja em localidades que carecem de estruturas e recursos.
Para entender um pouco mais sobre a realidade local e visualizar como ocorrem as missões na região amazônica conversamos com a Consagrada da Comunidade Epifania, Eliana Machado, que foi coordenadora da Ação Missionária da Arquidiocese de Vitória e fez missão em Lábrea.
Muitos são os estranhamentos de quem se propõe a sair em missão: novas pessoas, realidades e culturas são encontradas. Eliana Machado ressalta que o missionário carrega consigo malas que não deveria e que uma delas é o preconceito. “Nós saímos em missão rumo à uma realidade completamente diferente da nossa e, por vezes, saímos com o intuito errôneo de colonizar e levar ao outro nossos ideais e verdades”.
Eliana ilustra a afirmação acima com uma história que viveu em Lábrea:
“Depois de mais ou menos duas semanas que havia chegado eu comecei a me sentir muito mal fisicamente. Um dia, estando na Igreja veio uma senhora que era ministra de Eucaristia até a mim e falou: ‘Eliana, você quer que eu te leve na dona Sabá para ela rezar para você?’. Aquilo gerou impacto e me fez pensar: ‘Benzedeira? Não vou entrar nessa superstição’. Agradeci e falei que não seria necessário. Naquele momento eu coloquei o preconceito na frente. Com o passar do tempo, passei a compreender a realidade daquele lugar. Compreendi que aquela é uma ação que está dentro de uma prática cultural, de uma tradição que remete muito ainda às orações indígenas e de piedade popular. Uma realidade bem diferente do que presenciamos aqui na nossa região. Eu cheguei estranhando a situação e no fim já compreendia tudo aquilo. Foi uma experiência que colaborou para minha conversão, assim como me levou a refletir sobre as práticas preconceituosas que temos em relação à forma de oração e de espiritualidade”.
Lábrea está a mais de 4.000 KM de distância do Espírito Santo. Se colocar como missionário no local é sinônimo de muitas horas de viagem – sejam elas por vias aéreas, terrestre e/ou fluviais. A missionária Elaine explica um pouco mais sobre esse passo a passo e como os missionários são acolhidos na região:
“Existe a Desobriga – que é o momento em que os padres saem em missão pelas comunidades ao longo do país. A minha primeira missão foi então em uma desobriga nas comunidades ribeirinhas. Nossa experiência como missionário começa ainda dentro do barco: ficamos quase um mês no mesmo. Geralmente chegamos nas comunidades no período da tarde e é nesse momento que começamos a realizar as visitas nas casas da região. À noite participamos de um momento de reflexão e, no outro dia, é realizada a Santa Missa que oferece os Sacramento a todos aqueles que se prepararam para tal momento. Esse dia é sempre muito esperado pela comunidade, se torna praticamente um feriado, uma festa. A população organiza jogos, futebol e preparam para o almoço sempre os melhores alimentos que têm a oferecer. A acolhida daquele povo é lindíssima, é algo que converte. Estar com o povo ribeirinho sempre me fez sentir estar em casa”.
Eliana Machado coleciona histórias diversas com vivências na região de Lábrea. Muitas dessas remetem à alegria do povo e a satisfação de poder ajudar as comunidades daquela região. Há, contudo, também, aquelas que alertam sobre a realidade precária de Lábrea, assim como sobre as faltas de estruturas e amparo do poder público:
“Ao longo desse processo de missões colecionamos muitas histórias de superação, mas há também aquelas que não trazem boas lembranças. Durante a Festa de São João é muito comum naquela região que as pessoas brinquem pulando fogueira. Nesse processo eles adotam padrinhos e madrinhas para pularem junto. É uma brincadeira, mas esse laço criado acaba sendo levado por toda a vida.
Em 2016, quando estive com o padre Anderson Gomes – enquanto ele assessorava uma assembléia na Prelazia de Lábrea eu voltei a encontrar minha afilhada de fogueira, a Kátia. Eu a encontrei na igreja, na abertura da assembléia. No dia seguinte Kátia se sentiu mal e foi ao hospital. Ela tinha passado por cirurgia uns cinco anos atrás, na válvula mitral. O médico estrangeiro que a atendeu disse que faria o tratamento com antibióticos – o que se tinha de mais tecnológico na área de medicina no local era uma máquina de raio x.
Kátia estava com muita dificuldade para respirar e quando ocorrem emergências como essas é obrigação da prefeitura providenciar um táxi aéreo para levar até a capital Manaus. A medida que o quadro ia piorando fomos procurar o diretor do hospital para que providenciasse essa viagem. O município demorou a tomar uma iniciativa então eu fui parar na casa do secretário de saúde da época. Comentei que a situação era urgente e que ele precisaria fazer algo. Ele disse que daria para esperar um pouco mais, que na gestão dele não ocorriam problemas. Com minha insistência ele foi visualizar a situação. Fomos ao hospital, ele fez o pedido da aeronave e só seria possível que ela chegasse no dia posterior pela manhã.
Infelizmente, com o tempo que perdemos discutindo e procurando o poder público o prazo dado para a chegada da aeronave foi muito longo. Naquela noite perdemos a Kátia. No dia seguinte fui ao velório na casa dela. A família, amigos e até o secretário de saúde estavam lá. Ele me viu e falou comigo ‘bem que a senhora me avisou que isso poderia acontecer’. Naquele momento tive a oportunidade de falar com ele sobre toda a precariedade que envolve a saúde na região. Eu não falo só da falta de estruturas, às vezes é falta de interesse também. O óbito da Kátia infelizmente não foi um ponto fora da curva, é uma realidade frequente.
O planejamento é que nós, missionários, saiamos como mensageiros para atuar na região de Lábrea de forma preventiva. Quando chegamos lá é que temos a dimensão da realidade. Ao invés de agir de forma preventiva precisamos recorrer a uma atuação curativa, pois a situação é sempre mais emergencial do que imaginávamos”.
Por fim, Eliana comenta ainda sobre como se sente um missionário ao retornar à casa:
“Para mim foi muito difícil. Uma vez ouvi de um bispo que ao sair o missionário demora em média um ano para se adaptar ao novo local. Ao retornar ele precisa do dobro de tempo para se readaptar. Quando eu estava em Lábrea eu não queria retornar. Doris, irmã da Comunidade Epifania, me perguntou se eu ficaria. Eu questionei se a Comunidade iria permanecer lá também e ela me respondeu que não, que haviam outras missões a serem feitas. Disse a ela então que eu estava em nome da Comunidade e que aonde ela for estarei ao lado”, completa a missionária.
Depoimentos como o de Elaine Machado são necessários para ajudar na compreensão da realidade das missões e dos missionários pelo país – especialmente os da região amazônica. São histórias como essas também que enfatizam a importância dos laços criados pela Igreja com as comunidades-irmãs, contribuindo dessa forma para a chegada do Evangelho àqueles que mais precisam.